A Palestina é um paradigma contemporâneo para pensarmos que a aniquilação da região, sua cultura, independência econômica e população, significa também que outros povos e culturas em outros lugares do mundo, bem como a natureza...

A Destruição da Palestina é a Destruição do Planeta é o título do livro de Andreas Malm, professor de Ecologia Humana na Lund University, Suécia. No livro, Malm recupera uma história pouco documentada midiaticamente: o histórico interesse britânico na região da Palestina, enquanto ainda estava sob domínio do Império Otomano. O ano era 1840 e os britânicos buscavam estender seu domínio colonial no mundo. A região era atrativa em razão da sua localização estratégica e porque poderia ser também uma área de livre-comércio que até então tinha influência do Egito, cujo comércio estava em ascensão. O objetivo era desmembrar a crescente dominância árabe na região, bem como aproveitar recursos naturais na costa mediterrânea onde hoje se localiza a Faixa de Gaza, rica em reserva de gás e petróleo. Para tanto, em 1840, a cidade de Akka foi inteiramente destruída e seus habitantes, assassinados. Dava-se início ali um projeto colonial que passou das mãos da Grã-Bretanha para Israel.
A Palestina é um paradigma contemporâneo para pensarmos que a aniquilação da região, sua cultura, independência econômica e população, significa também que outros povos e culturas em outros lugares do mundo, bem como a natureza, pode ser aniquilada; já foi feito uma vez, por que não poderia acontecer novamente? Ilan Pappe, reconhecido historiador do conflito Israel-Palestina, reforçou, em 6 de agosto de 2025, no ato Da Limpeza Étnica ao Genocídio na Palestina, na Faculdade de Direito da USP, que essa escala de destruição não se refere somente ao evento localizado naquela região, mas diz respeito a toda a humanidade, e mencionou a importância da linguagem na descrição dessa destruição. Já Raja Shehadeh, em What Does Isarel Fear From Palestine, narra episódios de crescente desumanização dos palestinos.
É curioso notar, pelo noticiário da guerra em Gaza (poderíamos dizer que é uma guerra, já que a Palestina não é um Estado reconhecido e também não tem exército?), que estamos em franca direção a uma contabilidade de diferenciação de “unidades humanas”. As medidas de grandeza aplicadas às vidas dos israelenses e palestinos são distintas. Podemos citar apenas alguns números: quatro israelenses (soldados) trocados por 200 palestinos em janeiro de 2025; 33 reféns do Hamas trocados por 1.900 palestinos que estavam presos em Israel, também no mesmo mês. Nem todos os prisioneiros são terroristas, já que a rotina de intimidação e violência colonial na Faixa de Gaza é uma constante. Alvos fáceis, qualquer um pode ser preso para ser intimidado a colaborar com o colonizador.
Em tempos de inteligência artificial, parece que a mente humana passou a funcionar pela lógica dos números, atribuindo valor quantitativo a seres humanos de diferentes origens. Assim é possível criar uma escala admissível de sofrimento humano, atribuindo a cada um, a depender da sua nacionalidade (ou a falta dela), religião, cor, gênero, classe social, um valor ou falta de valor que determina o quanto de sofrimento será possível cada um passar. De 0 a 10, quanto vale um cidadão brasileiro que nasceu na periferia, é pobre e racializado? Quanto vale um morador branco de um bairro favorecido? Podemos fazer essa contabilidade pelo noticiário sobre a violência policial no Brasil, por exemplo. O que acontece em Gaza é uma reverberação amplificada do que está em curso em populações periféricas racializadas no nosso país.
E como tudo isso é ou não é noticiado? Como a linguagem pode moldar a percepção de modo a ajudar na atribuição de valor na contabilidade das “unidades de sofrimento humano” disponíveis na humanidade? O que é a humanidade frente ao cálculo de quem pode viver e quem pode morrer? Este cálculo não é novidade. Também foi realizado pelo nazismo, ao projetar e desenhar o Holocausto judaico, em larga escala. Felizmente, a linguagem ajudou historicamente a reconhecermos o antissemitismo. O sociólogo francês Michel Wieviorka, no livro Violence: A New Approach (La Violence, em francês), discorre sobre como os testemunhos das vítimas dos campos de concentração em audiovisual ajudaram na construção da percepção de que, de fato, os judeus foram vítimas do nazismo.
Já que as “unidades de sofrimento humano” podem ter seu valor atribuído pela linguagem, cabe entender como a Palestina vem historicamente sendo contada, ou como, historicamente, se atribui linguagem ao conflito israelo-palestino. Isso foi em parte investigado em artigos que assinei com a minha então orientanda de mestrado, Vitória P. Baldin, como, por exemplo, A emergência do digital no conflito palestino-israelense e a linha do tempo das estratégias político-comunicativas, Perspectivas de uma comunicação para paz em relação à cobertura jornalística brasileira sobre o conflito palestino-israelense e Reflexões sobre as relações entre mídia noticiosa e conflito permanente entre palestinos e israelenses. O objetivo é contribuir com a perspectiva de que a produção midiática no campo da comunicação, e, em particular, os formatos jornalísticos, coconstituem guerras e conflitos.
O resultado maior dessa investigação, como resultado do mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes acabou de ser publicado por Baldin: A Mídia e a Palestina: Comunicação, Poder e Resistência na Era da Informação. “Mais do que representar o conflito, a mídia aqui é entendida como parte dele – agente que molda o visível, o dizível e o possível. Este é um convite à escuta e ao reposicionamento epistemológico. Um chamado a pensar a Palestina não como exceção, mas como espelho das contradições comunicacionais do nosso tempo.” A possibilidade de a Palestina espelhar as contradições comunicacionais do nosso tempo, como conclui a autora, nos mostra que também estamos em frente a um espelhamento de um momento sombrio da existência humana neste planeta.
Daniela Osvald Ramos
Professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
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